Este blog post é baseado na intervenção de Vasco Malta no webinar O novo contrato social: Como podemos não deixar ninguém para trás, que decorreu no dia 12 de maio de 2022 e integrou a série de webinars Sustainability Talks organizado pelo Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment.
Sobre o autor: Vasco Malta é licenciado em Direito e possui um L.L.M em Direito Europeu em Contexto Global, atribuído pela Católica School of Law. Foi advogado desde 2005 e iniciou o seu trabalho na área dos direitos humanos no Alto Comissariado para as Migrações e o Diálogo Intercultural, em Portugal, em 2009. Foi também responsável jurídico da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e fez parte da Comissão Nacional de Direitos Humanos. Foi nomeado, pelo Governo português, em 2009 como Oficial Nacional de Ligação para a Agência Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, desde 2014 até 2018, trabalhou na Agência como Perito Nacional destacado. Em fevereiro de 2018 foi designado Adjunto do Senhor Alto-Comissário para as Migrações, sendo que assumiu funções, em março 2019 como Diretor para as Relações Internacionais, Politica Migratória e Captação de Migrantes do Alto Comissariado para as Migrações. Em novembro de 2019 foi nomeado Adjunto do Ministro da Administração Interna, para as áreas das migrações, refugiados, tráfico de seres humanos e violência doméstica e foi designado como Conselheiro na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial em representação do MAI. Em novembro 2020, depois de um processo de seleção internacional, foi escolhido como Chefe de Missão da OIM em Portugal.
A minha perspetiva é mais ligada à questão do contrato social, ligado ao papel dos refugiados e ao papel dos migrantes. Portanto é nessa perspetiva que eu queria falar, já que a OIM vê a integração das pessoas migrantes e das pessoas refugiadas como uma componente que é absolutamente essencial na gestão eficaz das migrações para promover a inclusão social e, obviamente, as boas relações entre os diversos grupos, contribuindo assim para sociedades mais diversas, mais inclusivas e obviamente mais coesas. E embora a integração seja altamente contextual, isto é, varia de país para país, a OIM reconhece que a integração bem-sucedida é todo um processo que é muito dinâmico e multidirecional, que envolve sempre a adaptação não só das pessoas migrantes, mas também das sociedades de acolhimento, com base, obviamente, nos princípios de proteção dos direitos humanos, de respeito pela tolerância pela não discriminação, entre outras. Portanto, é uma questão quase que multidimensional, que abrange a inclusão da pessoa migrante e da pessoa refugiada em várias áreas ou em várias esferas, como por exemplo, a esfera econômica, a esfera psicológica, social, linguística e cívica, bem como, a necessidade de capacitar as comunidades anfitriãs e outros atores locais para receberem, para se envolverem os migrantes e refugiados. E, portanto, obviamente também tinha sempre que trazer para aqui que a Agenda 2030 e o Pacto Global para as Migrações, que adotam claramente uma abordagem de all in, isto é, toda a comunidade, e abrange as diversas fases de migração, mais focadas nas atividades de partida e chegada, bem como as intervenções que a OIM tem na inclusão dos migrantes para a coesão social, para garantir a máxima eficácia e com isso beneficiar as diversas populações.
Na linha da ideia do impacto da crise pandémica nos grupos mais vulneráveis, gostaria de perguntar qual o papel dos refugiados na definição deste novo contrato social?
Eu diria que o papel dos refugiados e dos migrantes no novo contrato social é um papel fundamental. Queria sublinhar, como ponto prévio, que durante a pandemia foram muitas vezes os migrantes que estiveram na primeira linha do apoio à população que estava confinada em casa. Muitos migrantes continuaram a cultivar e a produzir na terra, a trabalhar nos supermercados, em lares e até em hospitais. E foram muitos migrantes, se não 99,9% dos migrantes, que entregaram comida a casa. Portanto, é justa, na minha opinião, uma homenagem a estas pessoas migrantes que tiveram na primeira linha, ao contrário de nós, que tivemos o luxo, alguns não tanto, mas de pelo menos continuar a trabalhar a partir de casa. Eu acho que é muito justo o reconhecimento ao trabalho que eles fizeram durante a pandemia e durante momentos mais complicados e de exigência em que todos nós fomos obrigados a ficar em casa.
Sobre o papel dos refugiados, eu destacaria o que nós fazemos na OIM para ajudar a este papel dos refugiados. Como eu já disse há pouco, a integração dos migrantes e dos refugiados é uma componente absolutamente essencial para a gestão eficaz das migrações e, portanto, as principais áreasde apoio da OIM aos migrantes e refugiados passam essencialmente por sete grandes setores. Primeiro, orientar e formar os migrantes antes e depois da chegada. Isto é, a OIM disponibiliza sempre aos migrantes informações básicas sobre o país de destino, e ajuda a identificar quais são as competências e as atitudes necessárias para se ter sucesso na sua nova cidade de acolhimento. Portanto este nosso apoio, acontece ainda na fase pré partida, antes de as pessoas refugiadas virem para Portugal no âmbito dos projetos de reinstalação e de recolocação. São doisconceitos que podem parecer complicados , mas para esclarecer chama-se recolocação de refugiados ou de requerentes de asilo a uma transferência de cidadãos que estão dentro de um Estado membro da União Europeia para outro Estado membro da União Europeia. No caso concreto de Portugal, nós temos um acordo bilateral com a Grécia que permitiu, por exemplo, trazer 271 crianças não acompanhadas só no ano passado, entre outras pessoas que provieram da Malta e vieram de Itália.
Chamamos reinstalação àquelas pessoas que são transferidas de fora de um país da União Europeia para dentro de um país da União Europeia. Concretamente, em Portugal, nós temos três programas em execução um com o Egito, um com a Turquia e outro com Jordânia, isto é, Portugal vai a estes três países buscar refugiados para depois integrar na nossa sociedade, entrarem no nosso país. Portanto, o nosso trabalho, como já disse, é a primeira grande tarefa. Trabalhamos para de facto orientar e ajudar a formar os migrantes antes e depois da chegada, com o objetivo de garantir uma adaptação bem-sucedida à nova sociedade, incluindo, sempre que necessário e sempre que possível, a formação técnica e linguística e depois preparar e capacitar as comunidades de receção. A OIM trabalha com um vasto grupo de partes interessadas, incluindo agências governamentais a nível nacional e até a nível local, os empregadores, os recrutadores. Em Portugal trabalhamos com as entidades de acolhimento, com os municípios, com o IEFP e com as escolas, centros de saúde, de forma que estejam preparados, e capacitados para receber ajuda daqueles que chegam – os recém-chegados.
Portanto, a OIM implementa um conjunto de atividades e formações de capacitação para aumentar a sensibilidade e a competência intercultural dos atores locais, para melhor responder, de facto, às necessidades específicas dos migrantes. Além disso, damos apoio e serviços diretos, portanto, tentamos garantir, em articulação com as entidades de acolhimento, o acesso aos serviços básicos, como a educação, a saúde, a habitação, a proteção social ou a proteção legal, que são precisamente imprescindíveis para que os refugiados possam, por um lado, sustentar as suas famílias e, por outro, maximizar o seu potencial ,contribuindo para as sociedades de acolhimento. Para além disso, facilitamos também a inclusão no mercado de trabalho atravésdo setor privado. Tentamos também desenvolver várias atividades que dizem respeito essencialmente à consciencialização e combate à xenofobia, isto é, a OIM envolve-se em diversas atividades de consciencialização com as comunidades anfitriãs para de alguma forma destacar o valor agregado da diversidade em haver várias pessoas de várias nacionalidades. Portanto, reunimos e organizamos discussões temáticas, desenvolvemos campanhas de advocacy, entre outras atividades que nós fazemos com o objetivo de combater a xenofobia epromover o envolvimento social entre os migrantes e as comunidades.
Portanto, é muito importante que as redes sociais e as relações dos migrantes e dos membros locais possam ser fomentadas através de organizações das atividades multiculturais, alguns contatos diretos por meio do desporto, da música, festivais culinários – ponto muito importante – e outras atividades recreativas.Neste sentido, , é importante, de facto, que este envolvimento social entre os migrantes e as comunidades aconteça e finalmente desempenhamos um papel importante na investigação e análise para o desenvolvimento de políticas e programas. isto é, para apoiar a formulação das políticas e diálogo baseada em factos.
A OIM trabalha de forma a conseguir incluir a integração dos migrantes em várias agendas políticas, na saúde, educação, no planeamento urbano e realiza obviamente várias atividades, tendo em vista a promoção da integração nestas áreas das pessoas migrantes.
Além disso, oferece assistência técnica aos Estados-Membros, inclusivamente às autoridades locais e a todas as partes interessadas, com o desenvolvimento e implementação de políticas e de ferramentas que visam exatamente capacitar estas entidades para que depois possam receber estas pessoas e possam servir de modelos de integração e de boas práticas. São estas as 7 áreas fundamentais que eu trabalho para ajudar o papel dos refugiados naquilo que é o novo contrato social.
Quais os tópicos a não esquecer no contexto do novo contrato social, ou seja, o que é que lhes parece mais importante no contexto deste novo contrato social?
Há duas ou três questõesmuito sucintas, que têm a ver com a necessidade de incluir no contrato social sempre pessoas migrantes e refugiados. Em Portugal, concretamente, nós temos a terceira taxa de envelhecimento da população mais alta do mundo. E temos uma das taxas de natalidade comparadas a países que estão em guerra. Esta conjugação entre população cada vez mais envelhecida e taxas de natalidade muito baixas são aquilo que eu tecnicamente chamo, muito simbolicamente, um suicídio demográfico. Isto é, simplesmente estamos a matar-nos a nós próprios porque não temos população e isso implica necessariamente uma sobrecarga muito elevada para as gerações mais novas. Esta disrupção da realidade da sociedade pode levar a problemas e quando discutimos este novo contrato social, é importante de facto contextualizar esta realidade em Portugal e só se combate estas medidas através de duas formas.
Primeiro uma clara política de natalidade, que não existe em Portugal, sejamos francos e honestos. Não há uma política de natalidade em Portugal ou de incentivo claro à natalidade. Há estudos claros e objetivos científicos que apontam no sentido de que a população portuguesa até 2050, pode descer até aos 6,5 milhões ou 7 milhões. Esta é uma realidade que poderá pôr em causa qualquer tipo de discussão do contrato social. Como é que se resolve isto? Primeiro, uma política de natalidade e depois uma política de atração de migrantes, o que digo frequentemente. Muitas pessoas esquecem-se de que existe um mundo de atração de migrantes, um mundo absolutamente competitivo.
E, portanto, é preciso trabalhar nesta atração de pessoas migrantes dos mais qualificados ou menos qualificados, consoante a realidade portuguesa. Mas a verdade pura e dura é que o contrato social, mesmo que não queiramos, vai precisar sempre de pessoas migrantes, vai precisar sempre dos refugiados, porque simplesmente são eles que escutam essa realidade do novo contrato social. São eles que vão fazer parte das empresas. Juntos fazem parte das comunidades onde nós estamos inseridos. Contar com as pessoas migrantes e com as pessoas refugiadas é ter em conta aquilo que são as suas realidades e as suas necessidades para a elaboração de qualquer contrato social.
No caso de existir uma nova vaga de refugiados climáticos nas próximas décadas e mesmo havendo essa vaga, como é que poderemos proceder à integração desses refugiados na nossa comunidade que poderá?
Juridicamente falando, não existe o termo de refugiado climático, mas antes migrante climático. Se, do meu ponto de vista, a Convenção de Genebra, que estipula o quadro internacional determina, os direitos universais das pessoas migrantes das pessoas refugiadas, não inclui essas alterações climatéricas na sua solidificação legal e, portanto, juridicamente falando, não existe refugiado climático porque a Convenção de Genebra não o comporta. Mas sim, de facto, as mudanças ambientais e os desastres naturais sempre foram causas impulsionadoras das migrações.
A verdade é que as previsões das alterações climatéricas para o século XXI são bastante objetivas e indicam que ainda mais pessoas vão estar em movimento, pois os diversos desastres relacionados com o clima, sejam as pessoas, sejam as temperaturas extremas, vão e já são mais frequentes e intensos, e obviamente as mudanças dessas condições climatéricas já afetam claramente meios de subsistência.
Portanto, embora ainda não existe esta definição internacionalmente aceita para pessoas que estão em movimento devido a razões ambientais, a verdade é que a OIM já apresentou uma definição junto do sistema das Nações Unidas que procura de alguma forma capturar a complexidade das questões que envolvem as migrações e as alterações académica e académica, as alterações climáticas.
Aliás, para muitos académicos, não existe a necessidade de criar uma nova categoria, porque as migrações sempre foram muito casuais. Ainda assim, de acordo com a definição da OIM refere pessoas ou grupos de pessoas que, devido a alterações ambientais repentinas ou coletivas, que afetam negativamente as suas vidas ou as suas condições de vida, e que por causa disso são obrigadas a deixar as suas residências habituais ou escolhem fazê-lo temporariamente ou permanentemente em bloco dentro do país e ou para o estrangeiro.
Esta é a definição que o Iémen apresentou de migrante climático e, portanto, pode ser uma forma para incentivar o estabelecimento de um novo estatuto legal para as questões ligadas ao clima, paralelo ao estatuto dos refugiados que já existe. No entanto, as evidências disponíveis sobre as mudanças climáticas e a degradação ambiental afetam de tal forma a mobilidade humana, que eu acho que são incontestáveis e, portanto, o atual foco do debate sobre o estabelecimento do Estatuto do Refugiado Climático pode levar a um debate de alguma forma limitado.
Citação Sugerida: V. Malta, ‘O novo contrato social: os refugiados e os migrantes’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 19th October 2022.
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